Inconstitucionalidade da lei que dispõe sobre a remuneração dos profissionais da educação pública do Pará

No Diário Oficial do Pará de 07 de outubro deste ano, foi publicada a Lei nº 9.322/2021, que “dispõe sobre remuneração dos profissionais da educação básica da rede pública de ensino do Estado do Pará, acrescenta o art. 32-A à Lei nº 7.442, de 2 de julho de 2010, altera a Lei nº 8.030, de 21 de julho de 2014 e revoga dispositivos da Lei nº 5.351, de 21 de novembro de 1986, e da Lei nº 7.442, de 02 de julho de 2010”.

Inicialmente,a lei alterou o vencimento-base dos servidores do magistério. Em seguida, resolveu modificar – alterando ou revogando – dispositivos da Lei Complementar nº 7.442/2010 (PCCR dos profissionais da educação); da Lei nº 8.030/2014 (regulamenta aulas suplementares dos professores); e Lei nº 5.351/1986 (Estatuto do Magistério).

Das alterações, destacam-se as seguintes: (1) a gratificação de titularidade, prevista no art. 31 da Lei 7.442/2010, não mais será calculada sobre o vencimento-base do cargo, passando a ter valores nominais, a serem reajustados por ocasião da revisão geral de remuneração; (2) desvinculação das aulas suplementaresdo vencimento base, gerando um efeito a menor sobre a base de cálculo das gratificações de magistério, de escolaridade, educação especial, risco de vida e Some; e dos adicionais de titularidade e por tempo de serviço; (03) transforma a gratificação de magistério em Vantagem Pessoal Nominalmente Identificada (VPNI), não podendo ser utilizada como base de cálculo de nenhuma outra vantagem, restando omissaa forma e o tempo de como será reajustada.

É evidente que o descolamento de um adicional ou gratificação do vencimento-base, significa perda remuneratória, no presente ou no futuro. Especialmente, em se tratando de profissionais do magistério, que possuem o direito, reconhecido inclusive pelo Supremo Tribunal Federal, de ter o piso salarial profissional do magistérioconsiderado como o vencimento-base.

Por ter sido a Lei nº 9.322/2021 fruto de uma tramitação extremamente acelerada na Assembleia Legislativa do Pará –  protocolada no dia 04/10, aprovada em três comissões no dia 05/10, discutida e aprovada em 1° e 2° turnos e redação final nesse mesmo dia, sancionada pelo governador no dia 06/10 e publicada no dia 07/10 – somente com a concretização do pagamento nos contracheques dos servidores do magistério é que se possibilita perceber o que realmente tem ocorrido com os vencimentos desses servidores. Com o passar do tempo, os efeitos da lei serão melhor desvendados.

No momento, é possível concluir que houve redução de valores nominais em determinadas vantagens pecuniárias,inclusive vantagens não alteradas diretamente pela Lei n° 9.322/2021. Como é o caso do adicional de tempo de serviço e de gratificação de escolaridade, da educação especial, risco de vida eSome; e dos adicionais de titularidade e por tempo de serviço, ocasionadapela modificação dos dispositivos sobre aulas suplementares, retirando-as da base de cálculo do pagamento de todas as vantagens do magistério.

Os aposentados, ao que tudo indica, foram os mais prejudicados: tomando um caso como exemplo, percebe-se o valor da Gratificação pela Escolaridade (80%)do mês de setembro, de R$ 2.198,42. Em decorrência da nova lei, passou a receber o valor de R$ 1.856,43. Uma redução de R$ 341,99. Em relação ao Adicional por Tempo de Serviço (65% da remuneração) recebia em 09/2021 o valor de R$ 3.393,81. Com a nova lei, passou a receber o valor de R$ 2.715,03. Uma redução de R$ 678,78.

O que fez o Estado para justificar a possibilidade dessa redução de vencimentos, ou melhor, para afirmar que não houve tal redução salarial?

A resposta, provavelmente, encontra-se na própria lei. Em seu art. 7°, que passou aparentemente despercebido: “Caso a aplicação do disposto nesta Lei implique redução nominal da remuneração paga na data de sua publicação, o valor nominal excedente será pago como Vantagem Pessoal Nominalmente Identificada (VPNI), cuja parcela não poderá ser utilizada como base de cálculo de nenhuma outra vantagem”. Em outras palavras, somente haverá redução de vencimentos se, após a aplicação da leicom diminuição de valores de vantagens, a soma – remuneração – não sofrer redução nominal.

Essa formulação jurídica, concretizada em lei, não foi desproposital, mas, certamente, para se enquadrar no entendimento do Poder Judiciário: “1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça consolidaram o entendimento de que o servidor público não tem direito adquirido a regime jurídico único, mas apenas a garantia da irredutibilidade de seus vencimentos (total). Precedente do STF e STJ. 2. As alterações efetuadas na sistemática de remuneração não implicaram na irredutibilidade dos vencimentos dos servidores estaduais, pois ainda que tenha ocorrido a redução do valor relativo ao adicional de função, houve reajuste no vencimento-base, que, em consequência, majorou o valor da respectiva remuneração”(RMS 21.932/MS, Rel. Min. MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Sexta Turma, julgado em 16/03/2010, DJe 5/4/2010).

Enfim, reajusta-se o vencimento-base, reduz-se vantagens (adicionais e gratificações) e quando da soma de todos esses valores, tem-se a remuneraçãosuperior ao valor recebido no mês anterior à lei. E, para o governo, tudo certo.

Porém, nem tudo que é inserido em uma norma deve ser, somente por isto, considerado constitucional ou legal. Há necessidade de que a matéria tratada se compatibilize realmente com os comandos normativos hierarquicamente superiores.

A interpretação de uma norma não pode se limitar aos seus comandos expressospara se chegar ao verdadeiro sentido. Dispomos de vários métodos de interpretações. No caso da Lei 9.322/2021, recorre-se àintepretação histórica, que “baseia-se da investigação dos antecedentes da norma. Pode referir-se ao histórico do processo legislativo, desde o projeto de lei, sua justificativa ou exposição de motivos, discussão, emendas, aprovação ou promulgação” (MONTORO, 2011, P. 426).

Nesse contexto, é público e notório que o atual governador sempre prometeu pagar o valor correto dopiso salarial profissional nacional para os profissionais do magistério público da educação básica (piso salarial do magistério), inclusive antes de ser eleito, culminando com a assinatura de uma “Carta Compromisso”com o Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Estado do Pará, Sintepp, em outubro de 2018. E continuou com a promessa nos dois primeiros anos de seu mandato.

Todavia, ao encaminhar o projeto de lei (n° 346) à Assembleia Legislativa, que deu origem à Lei 9.322/2021, o governo silenciou completamente sobre a figura jurídica do “piso”. Não há, em toda lei e nem na Mensagem do projeto, sequer uma mençãoda palavra piso. Silêncio que permaneceu após a sua aprovação, conforme se constata em notícias divulgadas nossites do “Agência Pará”[1]  e da Assembleia Legislativa.[2]

Pode parecer, mas não é estranho. Se deixasse expresso na lei, que se estaria concedendo a atualização do piso salarial do magistério, o governo sairia da guarita do entendimento do Poder Judiciário, provocando redução nas vantagens alteradas.

Por outro lado, o governo não pode sustentar que concedeu reajuste salarial à categoria do magistério, uma vez que tal concessão estaria vedada pelo art. 8º, inciso II, da Lei Complementar Federal n° 173/2020, que proíbe, até 31 de dezembro de 2021, a União, Estados e Municípios, de “conceder, a qualquer título, vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração a membros de Poder ou de órgão, servidores e empregados públicos e militares, exceto quando derivado de sentença judicial transitada em julgado ou de determinação legal anterior à calamidade pública”. Argumento que tem sido usado pelo Estado, através da Secretaria de Planejamento e Gestão, com respaldo da Procuradoria-Geral do Estado, para negar reajustes ou adequação de remuneração à categoria que os reivindicam.

 Como se envolvido em um círculo vicioso, caberia ao Estado alegar que estaria cumprindo uma “determinação legal anterior à calamidade pública”, qual seja, o pagamento do piso salarial do magistério previsto em lei, para possibilitar seu pagamento. Porém, como dito, sairia da cobertura das decisões judiciais, que possibilitaria redutibilidade de vantagens. 

É inegável que a Lei nº 9.322/2021 objetiva se adequar – ou cumprir – à Lei Federal n° 11.738/2008, que instituiu o piso salarial profissional nacional para os profissionais do magistério público da educação básica, uma vez que, desde 2016, o Estado não a cumpria.

Essa afirmação é facilmente constatada, com o disposto no seu art. 2° e correspondente Anexo I: “Art. 2° A Grade de Vencimentos do Quadro Permanente do Grupo Ocupacional do Magistério da Educação é a constante no Anexo I desta Lei”.

No Anexo I percebe-se a correção do valor do piso profissional do magistério, aplicando o valor estipulado pelo Ministério da Educação – MEC,  estabelecido na mencionada lei federal, que, para os anos de 2020 e 2021, o valor foi definido através da Portaria Interministerial MEC /MF nº 03, de 13/12/ 2019, de R$ 2.886,24, para vigorar a partir de janeiro de 2020, a incidir no vencimento inicial das Carreiras do magistério público da educação básica, para a jornada de, no máximo, 40 horas semanais (2º, §1º, da Lei do Piso). Assim sendo, considerando a carreira do magistério previsto na Lei n° 7.442/2010 (PCCR), passou a figurar exatamente esse valor no vencimento do cargo de professor, classe especial, nível A.

O Estado não precisaria conceder “reajuste salarial” aos profissionais do magistério, uma vez que o pagamento correto do valor do piso salarial do magistério independe de norma estadual. A Lei Federal n° 11.738/08conceituou o piso profissional como “o valor abaixo do qual a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios não poderão fixar o vencimento inicial das Carreiras do magistério público da educação básica, para a jornada de, no máximo, 40 (quarenta) horas semanais” (Art. 2º, § 1º). E a obrigatoriedade de reajustar seu valor em janeiro de cada ano está prevista no art. 5º, que também, no parágrafo único, estabelece o método de atualização.Após a divulgação do índice de reajuste pelo MEC, cabe aos estados e municípios tão somente viabilizar administrativamente o valor atual do piso.

A demonstração incontroversa da dispensa de lei específica para atualização do valor do piso, é que, desde 2011 (data da validade da lei do piso) até 2015, o Governo do Pará não precisou de tal instrumento normativo para cumpri-lo.

Vale dizer que não há necessidade da declaração de inconstitucionalidade de toda Lei 9.322/2021, posto que, se de um lado não há necessidade de se implementar o valor do piso salarial do magistério, por outro, nada impede que o seja. Mas, nas duas hipóteses, estaria impedido de alterar – diminuindo – determinadas vantagens, pois incidiria fatalmente na redução de vencimentos, além de violar o direito adquirido,vedados pela Constituição Federal, que garante a irredutibilidade de vencimentos dos servidores públicos (art. 37, XV) e assegura o direito adquirido (art. 5°, XXXVI). Aí reside a inconstitucionalidade da lei.

Atualizando o valor do piso, mesmo que através de lei, o Estado não poderia condicioná-lo a alterações de vantagens, pois, agindo assim, estaria burlando – violando – a Lei do Piso, que estabelece o piso como sendo o vencimento-base e, sobre ele, deve incidir tais vantagens previstas em lei.

Não é demais registrar que a Lei do Piso não será cumprida em sua íntegra, enquanto não for implementada efetivamente a hora-atividade de 1/3 da jornada de trabalho, já reconhecida pelo STF.

Pelo exposto, conclui-se: na Lei n° 9.322/2021 houve a adequação do valor correto do piso salarial profissional no vencimento-base, e não “reajuste salarial”. Diante dessa premissa, não deveria ocorrer alterações das vantagens previstas em leis. Ou, ocorrendo, devem ser analisadas isoladamente e suas perdas nominais, no mínimo, transformadas emVPNIs, em valores individuais respectivos ou de único valor global, do prejuízo gerado ao servidor; a remuneração que deveria receber em setembro de 2021, pelo valor correto do piso salarial 2020, incidindo sobre todas as vantagens do magistério e a remuneração que passou a perceber em outubro de 2021, haja vista o valor do piso salarial pago pelo Governo com as alterações legais efetuadas pela lei 9.322/2021.

Baseado nestes e em outros eventuais argumentos, o Sinteppcertamente tomará as necessárias medidas administrativas e/ou judiciais, por meio de ações coletivas e individuais, para recompor as perdas remuneratórias dos profissionais da categoria da educação pública do Pará, decorrentes da Lei 9.322/2021.

Belém, 03 de novembro de 2021.

Walmir Brelaz – Consultor Jurídico Sintepp.


[1] Agência Pará: https://agenciapara.com.br/noticia/31908/, de 05/10/2021.

[2] ALEPA: https://www.alepa.pa.gov.br/noticia/6633/, de 05/10/2021.

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