O impasse da dívida de estados e municípios

Por Maria Lucia Fattorelli [1]
Os estados e diversos municípios brasileiros estão fortemente endividados.
Esse processo de endividamento tem um ponto em comum: a partir do final da década de 90, a União refinanciou as então existentes dívidas dos estados, por meio da Lei n o 9.496/97 [2], e dos Municípios, pela Medida Provisória nº 1.811/99 [3].
Na época, cada ente federado firmou seu contrato com o Tesouro Nacional, representante da União, obrigando-se a colocar em prática um pacote de medidas. Os estados e municípios tiveram que assumir o compromisso de promover rígido ajuste fiscal mediante o enxugamento de gastos [4] e investimentos, além da privatização de empresas públicas, inclusive os bancos estaduais. A privatização dos bancos estaduais seguiu o programa denominado PROES, mediante o qual passivos desses bancos ficaram com os respectivos estados e foram refinanciados em conjunto com as dívidas do estado.
Esse processo vem absorvendo grande parte dos recursos dos orçamentos estaduais e municipais, afetando a vida de toda a sociedade que paga a conta, tanto por meio dos elevados tributos como por meio dos serviços públicos que deixa de receber. Apesar de pagar a conta, a sociedade não sabe que dívidas são essas; como foram contraídas; onde foram aplicados os recursos; quem se beneficiou dos recursos; qual a natureza dos passivos dos bancos estaduais privatizados que foram transformados em dívida do estado, etc.
É raro encontrar bibliografia sobre esse importante tema. Nesse sentido, a Auditoria Cidadã da Dívida vem cumprindo importante papel, publicando livro [5] e incentivando a organização de núcleos [6] locais para estudos e demais ações para a mobilização social.
As condições de refinanciamento impostas pela União aos estados e municípios mostraram-se extremamente onerosas. A cada mês a dívida é atualizada e sobre o montante atualizado incidem os elevados juros, de forma cumulativa ao longo dos meses. Esse formato fez com que as dívidas se multiplicassem e se transformassem em uma bola de neve.
Para se ter uma ideia, o município de São Paulo refinanciou uma dívida de R$ 11 bilhões no ano 2.000. Em 2013 essa dívida alcançou o patamar de R$ 58 bilhões, apesar de o município ter pago R$ 28 bilhões para a União no período. Os números não fecham, pois entram em ação os perversos mecanismos de atualização monetária mensal cumulativa calculada com base em um dos índices mais onerosos, o IGP-DI, calculado por instituição privada, a FGV. Em cima dessa correção mensal, ainda incidem os elevados juros, a cada mês. E essa onerosidade de condições não é o único problema dos paulistanos. Recaem, sobre a origem da dívida que foi refinanciada, diversas denúncias de fraudecomprovadas até por Comissões Parlamentares de Inquérito. Resultado: a maior cidade da América Latina não tem recursos para uma série de investimentos essenciais à população, mas vem pagando religiosamente essa dívida eivada de fraudes, ilegalidades e ilegitimidades.
A situação de diversos entes federados ficou tão onerosa que alguns preferiram buscar recursos no exterior, endividando-se junto a bancos privados internacionais e Banco Mundial, para pagar à União. Uma verdadeira aberração! E mais: diante da nova alta do dólar, os entes federados que adotaram essa alternativa esdrúxula se depararão com dificuldades ainda mais graves.
Esse problema da dívida dos estados não fazia parte da agenda de debates políticos, até que a CPI da Dívida Pública realizada na Câmara dos Deputados em 2009/2010 pautou o tema, juntamente com as discussões sobre a dívida federal externa e interna [7].
A partir daí, aumentou a pressão sobre o governo federal, para que fossem revistas as condições do refinanciamento das dívidas dos estados e municípios, tendo em vista o desrespeito ao Federalismo e uma série de ilegalidades e ilegitimidades verificadas no processo.
Nesse contexto, o governo federal apresentou ao Congresso Nacional o projeto de lei que recebeu o n o 238 na Câmara dos Deputados e n o 99 no Senado Federal, propondo modificações mínimas que não chegam a resolver o problema, mas significavam um alívio bem reduzido para os estados e municípios.
Tal projeto foi discutido nas duas Casas Legislativas, tendo sido aprovada, em 5 de novembro de 2014, a Lei Complementar n o 148 [8]. No dia 25 do mesmo mês a Lei foi sancionada pela Presidente Dilma, autorizando, em resumo, as seguintes modificações:
·         Em relação ao cálculo dos juros, estes passariam a ser calculados e debitados mensalmente, à taxa de quatro por cento ao ano (antes variavam de 6 a 9%), sobre o saldo devedor previamente atualizado. A atualização passaria a ser calculada mensalmente com base na variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Ampliado – IPCA (antes era aplicado o IGP-DI). Esse somatório de atualização mais juros reais ficaria limitado à Selic.
·         Em relação ao estoque, este seria recalculado com base na Selic, e a União concederia descontos se o recálculo resultasse em valor inferior ao existente.
Apesar de representar uma redução ínfima para os estados e municípios, o Governo Federal anunciou, na tarde de 24 de março de 2015, que não irá cumprir a Lei Complementar n o 148/2014.
Cabe lembrar que o próprio governo encaminhou o projeto de lei ao Congresso Nacional em 2013 e o sancionou em 2014, alimentando os discursos de governadores e prefeitos de que tal lei “resolveria o problema” de suas dívidas.
A Advocacia Geral da União declarou que o governo tem razão em não reduzir os juros cobrados dos entes federados, utilizando o argumento de que a lei é “apenas autorizativa”. Por sua vez, o Tesouro Nacional afirmou que precisaria de decreto para regulamentar os novos cálculos indicados na Lei Complementar nº 148/2014.
Na realidade, o não cumprimento da Lei Complementar no 148/2014 está relacionado à necessidade de utilização de recursos advindos de estados e municípios para completar os pagamentos da dívida pública federal. Desde a aprovação da Lei 9.496/97 e da edição da MP 1.811/99, todos os pagamentos de dívidas por parte de estados e municípios à União são destinados por esta ao pagamento de suas próprias dívidas, conforme dispositivos idênticos que constam dos respectivos atos legais:
·         Lei 9.496/97, Art. 12 – A receita proveniente do pagamento dos refinanciamentos concedidos aos estados e ao Distrito Federal, nos termos desta Lei, será integralmente utilizada para abatimento de dívida pública de responsabilidade do Tesouro Nacional.
·         MP 1.811/99, Art. 10 – A receita proveniente dos pagamentos dos refinanciamentos concedidos aos Municípios, nos termos desta Medida Provisória, será integralmente utilizada para abatimento da dívida pública de responsabilidade do Tesouro Nacional.
Diante disso, é evidente que o governo federal está preferindo atender à pressão do setor financeiro, que exige elevado superávit primário em 2015, implementação de rigoroso ajuste fiscal, e elevação dos juros, sob ameaça de agências de risco virem a rebaixar a nota de grau de investimento do Brasil. É evidente que nenhuma concessão pode ser tolerada nesse contexto.
O Congresso Nacional reagiu ao descumprimento da Lei Complementar nº 148/2014. Já foi aprovado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei Complementar n o 37/2015 [9] que estabelece prazo para que a União dê cumprimento à referida Lei. Agora o projeto se encontra no Senado Federal.
O grave problema da dívida dos estados e municípios demonstra a necessidade de envolvimento da cidadania no tema do endividamento público. É preciso exigir o enfrentamento do Sistema da Dívida, que atua em âmbito nacional e regional sacrificando o país e toda a sociedade para beneficiar exclusivamente ao setor financeiro nacional e internacional. A ferramenta que joga luz sobre esse processo e revela a verdade é a AUDITORIA.
 
[1] Coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida www.auditoriacidada.org.br ehttps://www.facebook.com/auditoriacidada.pagina. Membro da Comissão de Auditoria Oficial da dívida Equatoriana, nomeada pelo Presidente Rafael Correa (2007/2008). Assessora da CPI da Dívida Pública na Câmara dos Deputados (2009/2010). Convidada pela Presidente do parlamento Helênico, deputada Zoe Konstantopoulos para integrar a Comissão de Auditoria da Dívida da Grécia a partir de abril/2015.
[2] A gênese desse refinanciamento está expressa em Carta de Intenções de dezembro/1991 com o FMI, itens 24 e 26.
[3] Esta Medida Provisória foi sendo reeditada até a MP 2.185-35/2001, quando passou a vigorar permanentemente.
 
[4] Em relação aos gastos com pessoal por exemplo, os estados e municípios teriam que:
limitar o gasto com pessoal, adequando-se às limitações da Lei de Responsabilidade Fiscal
promover a reforma da previdência dos servidores municipais aumentando a alíquota de contribuição de 6% para 11%
limitar as despesas com aposentados e pensionistas.
[5] FATTORELLI, Maria Lucia Auditoria Cidadã da Dívida dos Estados (2013) Inove Gráfica e Editora, Brasília.
[6] http://www.auditoriacidada.org.br/nucleos-da-auditoria-cidada-da-divida/
[7] http://www.auditoriacidada.org.br/clique-aqui-para-saber-como-foi-a-cpi-da-divida/
[8] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp148.htm
[9] http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1050788
Fonte: http://www.auditoriacidada.org.br/o-impasse-da-divida-de-estados-e-municipios/

© Copyright SINTEPP

Desenvolvido por Netozip