A reforma administrativa, apresentada no início de setembro de 2020 pelo presidente Jair Bolsonaro ao Congresso Nacional, possui um texto e argumentos que o respalda. A principal justificativa teórica já se coloca como uma provocação aos servidores públicos: “de que o Estado custa muito, mas entrega pouco”. Portanto, torna-se imperativo “pensar em um novo modelo de serviço público, capaz de enfrentar os desafios do futuro e entregar serviços de qualidade para a população brasileira”. É o que consta na Mensagem do Projeto de Emenda Constitucional 32 de 2020 – PEC 32/2020. E assim está concretizado no texto da proposta.
Ou seja, silenciar diante desses argumentos consiste, necessariamente, em atribuir a culpa da suposta falta de qualidade do serviço público ao servidor público. Em aceitar passivamente a proposta de reforma proposta.
O texto da PEC 32/2020 é coerente com sua justificativa: estado menor, possibilitado por terceirizações e privatizações e menos servidores públicos, com mecanismos concretos de desligamentos, com destaque para o fim da estabilidade; que gaste menos: leia-se, redução de remuneração e extinção de determinadas vantagens pecuniárias atribuídas aos servidores públicos.
Enfim, a reforma administrativa vai se apoiando nos mantras proferidos pelo ministro da Economia Paulo Guedes, de que os servidores são privilegiados, e seus direitos não passam de regalias. Daí a necessidade de se economizar R$ 300 bilhões em dez anos.
O lado limitado do alcance da reforma administrativa, por si só, nos faz recusar a carapuça da ingenuidade. Ela não abrange os membros do Poder Judiciário – magistrados -, do Poder Legislativo – parlamentares -, e dos ministérios públicos – promotores e procuradores. Embora atinjam os seus servidores. Também não abrange os militares, pelo frágil argumento de não serem considerados juridicamente servidores. Porém, há raros dispositivos que os alcançam, para favorecerem, quando propõe possibilitar ao militar da ativa ocupar cargo ou emprego de atividade própria de profissional de saúde ou de magistério.
Por sua vez, o presidente Bolsonaro, dias antes do protocolo da PEC 32/2020, afirmou que “a reforma administrativa não atingirá nenhum dos atuais servidores. Ela se aplicará apenas aos futuros servidores concursados”. Uma tentativa astuta de trazer para seu lado, ou fazer calar, a camada que também será prejudicada com a tal da reforma. Discurso que se desfaz com uma análise superficial do texto, pois, mesmo na hipótese de ser verdadeiro, o simples fato de coexistirem duas espécies de professores – estáveis e não estáveis – já causará desconforto e fragilidade de uma categoria unificada. Além da complexidade de se definir a abrangência do direito adquirido.
O fato é que todos os servidores, os atuais ou os futuros, serão atingidos pelos dispositivos da reforma administrativa, com maior ou menor proporção. No caso dos atuais servidores que recebem adicional por tempo de serviço – anuênio, triênio ou quinquênio -, por exemplo, poderão deixar de recebê-los a partir da promulgação da Emenda Constitucional, uma vez que será vedada a concessão de adicionais referentes a tempo de serviço. O direito adquirido neste caso, dirão, recairá somente sobre a parcela já recebida, incorporada na remuneração. Governadores e prefeitos, com esse argumento, poderão revogar ou deixar de instituir o adicional em suas leis específicas. Desta forma, pode ocorrer com outras vantagens vedadas com a PEC, tais como: licença-prêmio, licença-assiduidade ou outra licença decorrente exclusivamente de tempo de serviço – com exceção para licença para fins de capacitação -; redução de jornada sem a correspondente redução de remuneração; progressão ou promoção baseada exclusivamente em tempo de serviço.
Em relação aos efeitos da reforma na vida funcional dos professores e especialistas ou técnicos em educação, considerados profissionais do magistério, serão de igual forma, devastadores, independentemente das especificidades que esta categoria possui, especialmente previstas no art. 206 da Constituição Federal, que estabelece os princípios em que o ensino deverá ser ministrado, tais como: garantia de planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos; gestão democrática do ensino público; e piso salarial profissional.
Desses impactos, destacam-se os seguintes:
FIM DO REGIME JURÍDICO ÚNICO: com a proposta da alteração do caput do art. 39 da CF/88, extingue-se, de uma vez por todas, a exigência da União, Estados e Municípios instituírem regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da administração.
Não significa o fim automático das normas que instituíram o regime estatutário e Planos de Cargos e Carreira, na rede estadual – Lei 5.810/94 e Lei 7.442/2010 – e municipais. Porém, passarão a existir paralelamente com outros regimes. Em outras palavras, haverá vários tipos de servidores, especificados de acordo com seus vínculos funcionais.
QUATRO ESPÉCIES DE SERVIDORES: coexistirão, no mesmo ambiente, os atuais professores e especialistas estáveis, regidos pelo que ainda restar das leis acima mencionadas; os servidores que ingressarão após a Emenda, com vínculos por prazo indeterminado, provavelmente a maioria, já que não serão considerados como cargo típico de estado, que poderão ser demitidos a qualquer momento, sem indenização, sem FGTS; os servidores com vínculo por prazo determinado,conhecidos temporários, com garantia funcional mais precária. E ainda, os servidores providos em cargos de “liderança e assessoramento” para exercerem, inclusive, o cargo ou função de diretor de escola. As consequências dessa relação devem ser profundamente analisadas.
FIM DA ESTABILIDADE: os atuais servidores permanecerão com o direito à estabilidade. Com a PEC aprovada, só irão adquiri-la os servidores providos no cargo típico de Estado, após o período de experiência e com desempenho satisfatório.
FÉRIAS DE TRINTA DIAS: a PEC 32/2020 prevê a vedação da concessão de “férias, incluído o período de recesso, em período superior a trinta dias pelo período aquisitivo de um ano”. Sabe-se que as férias do professor, de 45 dias, não é um direito previsto na Constituição Federal. No âmbito da rede estadual está contido no art. 47 do Estatuto do Magistério – Lei nº 5.351/1986. Em diversos municípios, em que não há essa previsão em leis locais, os gestores recusam-se em concedê-las por esse período, sendo efetivada apenas por força de decisão judicial. Não é difícil imaginar o que vem por aí na pós-reforma, envolvendo esse direito.
DIRETOR DE ESCOLA: há casos em que o diretor de escola se constitui em uma função gratificada, como na rede estadual; em outros, de cargo em comissão. Sem a reforma, esta já é uma questão complicada, em que prefeitos se negam a promover eleições direta para diretor de escola, inclusive, através de questionamento judicial. Desconsideram, inclusive, o princípio da gestão democrática do ensino público, que continuará em vigor. A partir da reforma, esse cargo poderá ser exercido por servidores de “liderança e assessoramento”, para exercerem, inclusive, o cargo ou função de diretor de escola. Os diretores de escola poderão ser, a depender do governo, pessoas politicamente de sua confiança.
PISO PROFISSIONAL DO MAGISTÉRIO: o piso salarial profissional nacional para os profissionais do magistério (art. 206, VIII, da CF/88), nos termos de lei federal (Lei nº 11.738/2008), continuará em vigor, uma vez que não foi alcançado pela PEC 32/2020.
APOSENTADORIA: a PEC 32/2020 não dispõe sobre aposentadoria. Somente em raríssimos casos, como quando veda a aposentadoria compulsória como modalidade de punição, abrangendo, no máximo, os magistrados. Até porque o sistema de previdência social já foi devastado pela recente Reforma da Previdência, através da Emenda Constitucional 103/2019.
Se a PEC 32/2020 for aprovada, estas serão algumas das consequências na vida funcional dos profissionais do magistério – e dos servidores da atividade meio, de um modo geral.
Outras certamente poderão ser identificadas nas entrelinhas da Reforma, que não é pequena. São 11 artigos reformados, 27 trechos alterados e 87 incluídos. Isto tudo somente na PEC 32/2020. Para completá-la, estão previstas duas leis complementares e seis leis ordinárias.
Tomar conhecimento do conteúdo da Reforma Administrativa, antes de sua aprovação pelo Congresso Nacional, é um dever dos que possuem compromisso com a Administração Pública, especialmente dos servidores públicos, para que não sejam vítimas apenas da concepção ideológica a qual se reveste, mas, sobretudo, dos comandos normativos que virão impiedosamente impor um novo paradigma institucional.
Walmir Brelaz – Consultor jurídico do Sintepp.